No Terraço de Lisboa

No Terraço de Lisboa


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Hoje acordei com a vontade própria dos incautos e ergui-me de um pinote rumo à memória e ao pulmão da cidade de Lisboa.
Devo desde já prevenir-vos para a certeza de que as palavras não me vão servir de muito, mas ainda assim vou tentar dizer-vos qualquer coisa que valha a pena ser lida, mesmo que na diagonal, porque de facto poucas são as palavras que se revelam verdadeiramente úteis para descrever o que hoje encontrei.
Lisboa é a minha cidade, é mesmo.
É bonita de onde quer que se olhe para ela, no seu todo, como uma mancha de cor já envernizada e retocada, como uma tela pintada e deliciada com atenção pormenorizada que o pintor lhe confere.
Mas Lisboa é tão mais bonita quando vista do seu próprio terraço, vista do alto, não, do alto não, do mais alto, do alto de Monsanto.
Foi como se tivesse saído de casa com a certeza de que ia tentar subir à torre mais alta da idílica fortaleza verde que se aninha no coração da cidade, para lhe dar a graça das pinturas romanescas dos mestres renascentistas.
Máquina no saco, como o guitarrista que arruma a guitarra e se prepara para ir tocar sabe Deus onde. Assim me senti esta manhã. Não era coisa para menos, afinal de contas tinha acabado de decidir ia redescobrir um edifício mítico da cidade, perdido naquela perdição em que se perde quem é forçosamente remetido ao abandono e ao descuido, ao desleixe e ao fatalismo. E não é de forma inocente que digo Quem e não O Que, porque na verdade o Panorâmico do Monsanto tem vida, tem história, tem pois, tem uma tremenda e palpável memória. As paredes choram e uivam de dor, não é ficção nem terror, é um pedido de ajuda, feito com educação. Um salva-me por favor!
Tem as escadarias encurvadas e os tectos pendurados, cansados, exaustos das lutas parvas contra o tempo, contra a força da chuva e do vento. Tem fios e mais fios e vidros, muitos, tantos, todos os quantos se partiram e partidos foram, todos os quantos se prostraram uns contra os outros, no chão da sua eterna e perturbada existência. Aqueles vidros não conheceram mais janela alguma, não quiseram ir-se para mais parte nenhuma. Eu também não ia se fosse vidro, ou melhor, se fosse um daqueles vidros, daquelas janelas, daquela vista, quer fosse inteiro ou já partido, porque há coisas que não se podem separar, e os vidros das janelas vêem mais longe do que se pode sequer imaginar, e o vidro nem sempre é tão e somente… vidro.
Cheguei curioso, com respeito.
Claro que é apenas um edifício abandonado, mas é preciso respeitar as paredes, as escadas, os vidros, é preciso pisá-los com alguma delicadeza, em prestações suaves, com o pé seguro do caminho que leva, mas sem ser insolente e espalhar tudo o que se lhes mete na frente, dos pés evidentemente.
Circundei o espaço num jeito que podia bem ser de turista, olhando e admirando, fotografando o redor, a companhia que não deixa que o edifício se amedronte nas noites de tempestade, a protecção que o conforta quando lhe chega à pele a humidade, a verdura que lhe dá esperança, a esperança com que contorna o quão dura e triste é a sua realidade. E a vista? A Vista!!
Pouco falta para que se encerre de vez o ciclo de vida de um majestoso e burguês edifício que foi pensado para tudo menos para aquilo que hoje é, um depósito do que já teve vida, um acumular de escombros, de noites, de dias, um ajuntamento de restos de tudo o que ali houve, o que ali se viveu, o que ali se viu e se sonhou.
Em 1992, tive a felicidade de presenciar a festa de casamento de uma das minhas estimadas tias, ali, exactamente naquele mesmíssimo sítio. Recordava-me sem dúvida da entrada e das escadarias intermináveis para umas curtas pernitas incansáveis.
Eu e o meu irmão levámos a noite a subi-las e a descê-las, pouco mais há a fazer para duas crianças tão pequenas num sítio tão grande.
Não posso dizer que me senti triste por ter visto o “monstro” esventrado, encolhido, envergonhado com tudo o que lhe tem acontecido, que me tenha sentido sequer incomodado com a sua morte lenta, senti-me sim agraciado por ver o que uma “coisa” assim aguenta. Ai aguenta, aguenta!

Pela primeira vez tive a sorte de ver a minha cidade com os olhos que hoje tenho, bem diferentes de quando nem tão pouco tinha o tamanho, que me permitisse sequer espreitar.
As janelas eram altas, enormes, esbeltas e cúmplices, era preciso bem mais do que pernas curtas para lhes conseguir tocar. E os olhos que tinha, na verdade, não eram olhos de quem conseguisse procurar. Queria era subir e descer escadas, as camisas desfraldadas, as canelas magoadas, mas… não faz mal nenhum, era dia de festa e enquanto os adultos brindavam com querer, deles não queríamos nem saber, e escadas? Não há mais para subir e descer?
E hoje, 21 anos depois, quase, quase vinte e dois, subi a montanha, sim a montanha que nela guarda o monte e fui beber a água directamente da fonte, fui ver a Lisboa que não se vê, nem do Castelo, do Bairro Alto ou da Nossa Senhora do Monte, dá para vê-la de fio a pavio, dá para ver desde ao longe na lezíria até aqui bem perto, no finalzinho do rio, o Tejo pois com certeza, não se percebe logo pela mais do que inquestionável grandeza?
E a Natureza que de verde o resguardou, foi a sua sorte, razão pela qual tanto tempo ali aguentou.
E eu?
Ainda aqui estou.
Fui lá dar de beber aos olhos e nenhum reclamou.
Como estava bom o almoço que Lisboa me preparou.
Sem pratos, sem talheres, sem mesa, só a memória da história tão portuguesa de um edifício que já foi Rei, Príncipe e Imperador e que hoje sofre com a dor, de não ter mais quem receber.
Não tem vergonha de assim ser, de estar nu mas não parecer, tem pena de estar sozinho, de ser difícil o caminho e de não saber o que lhe vai acontecer.
Como se sentirá um espaço que mais não tem porque viver?
Sete mil metros de frustração e tristeza em língua portuguesa.
Vale a pena ver com os olhos e com as solas das sapatilhas, Lisboa tem sim mil maravilhas e outras tantas anormalidades. Porque se deixou ali ficar um cemitério de grandeza e um palácio de liberdades. Tanto ali se podia fazer, tanto ali se podia tentar, mas… para isso é preciso que sejamos mais do que fomos, mais do que somos mais do que queremos ser.
É preciso pensar, agir e fazer e sobretudo é preciso cuidar do que se está a oferecer e a vista que tudo aquilo oferece aos olhos, merecia pessoas aos molhos e sorrisos de alegria, não merecia por certo um palácio de cimento, cada vez mais cinzento, na floresta vazia.
E Monsanto ali ao canto, do verde que se vê ao longe, na quietude clerical de um monge, com um palácio a céu aberto. Não. Não é mais. Não está certo.
É Inverno e está frio e o vidro que no caco do lado se enrosca, por certo que com todos aposta que não há pior do que a perspectiva triste da morte anunciada, nem Kundera imaginava que o vidro sentiria assim. Quanto tem um prédio de sofrer, até alguém perceber, que das obras deve cuidar que as manda edificar? É triste mas nada disto irá mudar.
O homem continuará a criar, a construir e a levantar, com a mesma rapidez com que é capaz de virar costas e tudo abandonar.
Tristes de nós que vivemos num mundo sem memória.
Se assim não fosse, talvez fosse outra a histórias.
Dos prédios e das pessoas, de todas as coisas boas que por impulso deixam de o ser.
Vá-se lá perceber.

 

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Contraste(s)

Contaste – Diferença profunda entre coisas e pessoas; oposição.

medoAcorda.
São 9:00 e chove copiosamente. Descaradamente copiada de todos os outros dias com chuva. Contraste.
A chuva perdeu a vergonha e contrastou com a vergonha dos meus olhos amedrontados e desconfiados.
Primeira vez, não, segunda vez, assim é que é. Segunda vez e a segunda de tantas outra vezes que ainda estão para chegar. Contraste.
10h00 e vamos lá a espetar a primeira agulhinha no bracinho. Não custa. Não dói. Mas pica. Corredor e mais uns metros.
As pessoas doentes ficam mais chatas? Contrastam com a falta de paciência que reina numa sala de espera. Quem espera sempre alcança, certo?
Senha. Admissão. Espera. Paciencia. Bate bate coração. Não gosto disto, não gosto mesmo, não gosto nada desta saga não encomendada.
– Já alguma vez fez este tipo de exames?
– Com contraste? Já.
Contrasta igualmente a confiança. A tua, claro está, absolutamente inabalável, pelo menos na parecença.
Pareces efectivamente feita de uma fibra que não existe nos materiais com que se fazem os outros homens, as outras mulheres, as outras companheiras e acompanhantes que acompanham, com força, com fibra, com coragem, sem contraste.
Preocupada comigo. Com o meu nervoso que já vai tendo pouco de miudinho e muito de crescido.
O nervoso dos crescidos é diferente do nervoso das crianças. Tem o dobro da dose da irracionalidade e da irreflexão, mas tem metade da razão e sobretudo tem a incapacidade absoluta de alcançar a calma que se lhe exige, no fundo, mais um pedaço de irreflexão que se liga ao tremor da mão e ao bater acagassado do coração. Contraste. Contrasta, se constrasta.
– Vai beber isto… 1 copo a cada 10 minutos. (Tenho de aviar isto de penálti que esta merda sabe mal que nem te conto)
Esbugalhaste ligeiramente os olhos quando me viste mandar abaixo o primeiro de 5 copos de groselha desenxabida, que mais parece uma mixórdia de frutos silvestres com detergente de limpar soalho.
Disse-te que só assim é que dá para beber aquela porcaria. Saberá a quê a água da bacia?
2º copo e viro a página. Mário Vargas Llosa (des)encoraja quem quer escrever, ser escritor. Leio mais e mais e digo-lhe:
– Continue por favor.
“Todos os grandes, os admiráveis romancistas foram, a princípio, escritores aprendizes cujo talento se foi gerando à base de constância e convicção.”
– Obrigado Vargas Llosa, continua a ser um prazer.
3º copo e começa a percorrer-me a vontade inegável e irrecusável de urinar. Pudera. A virar copos de aguadilha desta forma nem com uma fralda me safava.
Mais uma página, mais uma festinha, um beijinho, obrigado meu amor. As tuas palavras surdas em jeito de beijinhos de um mimo e de um carinho inqualificáveis pregam-me sossegado na cadeira de pau que de santo não tem nada.
Olho pouco em meu redor.
As pessoas que ali estão nao falam. Não querem falar. Não querem dizer porra nenhuma!
É chegar e… se desse… era chegar e virar!
Contraste. O contraste de uma sala muda e dos desenhos nas paredes, a spray, do Mosaik e de… do… do outro que agora não sei.
4º copo e só falta mais um. Para o almoço? Talvez feijão frade com atum.
E os 10 minutos que não passam e o pior que ainda está para vir. Mas, caramba… é assombroso o bem que sabe ver-te sorrir. O bem que sabe saber que não vais fugir, que dali não arredas pé, é tão bom não é?
5º copo e logo te apressas a levar o “balde” à “senhora”, estavas desejosa que entrasse e que se acabasse a tortura. E mal sabias tu que ainda me faltava espreitar mais outra abertura.
Entrada e a picadela da praxe. Braço esquerdo? E a veia? Espero que a ache. Nada. Ainda me diz que tenho a veia bailarina. Tem muita gracinha tem, a menina.
Posto o acesso e eu já possesso… mas tem de ser e o que tem de ser tem… muita força e a mim, não há quem me torça.
Contasta a alegria e simplicadade de quem trabalha com o desconforto e o olhar torto de quem ali calha. Não falha!
– Encha o peito de ar! Não respire… Pode respirar.
E a temperatura desata a aumentar. O corpo ferve e a alma treme de calor que não se gosta. É rápido. É estranho. E o desconforto tamanho que me passa pelos pés, me mói a cabeça e me mostra que a vida em revés tem mais do que se lhe diga. E há outra coisa melhor que o amor de uma vida?
Contraste.
Eu e tu. Eu digo tu ouves. Eu escrevo e tu lês. Eu sofro e tu também.
Às vezes é um pouco como o Pedro, apetece-me voltar para “os braços da minha mãe”.
Mas não sem ti. Que de tão oposta me trouxeste a vida à Costa. Que tão pura me mostras que o pouco que dura é melhor do que o tudo que voa, que me dizes que a vida contigo não pode ser senão… muito boa!
Contrastes. De vida. De luta. De crença absoluta que a vida lutada sabe bem melhor que a postura derrotada.
No fundo da vida leva-se ou pouco ou quase nada. Contrasta com a crónica da vida anunciada.
Custa muito?
Que nada.
Contrasta a noite com a crua beleza da alvorada e com a tua voz imaculada. Sim a tua, minha querida apaixonada que me passeia de mão dada de folha em folha de uma história iluminada.

A crónica da “Crónica dos Bons Malandros”, de Mário Zambujal

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Esta notável crónica do Mário Zambujal foi devorada em 3 dias.
E porque raio demorou tanto ou tão pouco tempo? Não que devam existir tempos previamente determinados para se ler seja que livro for, mas este em particular, consome-se com a mesma vivacidade com que o autor nos cola o traseiro ao sofá e nos empurra para o folhear ávido e compulsivo das páginas que compõem a sua intemporal Crónica dos Bons Malandros.
Do autor sei-o jornalista de carreira, recordo-me de o ver “pivotar” aos domingos em jeito desportivo, na RTP e recordo-me também de o ler aqui e ali e de pensar que um dia haveria de o ler mais a sério, com olhos de ver e não apenas com olhos de olhar.
Com a primeira edição datada de 1980, 3 anos mais velha do que eu, esta fantástica rábola é um elogio à imaginação, um templo de ritmo na escrita que cativa e prende quem tem a sorte de o estar a ler. Sobretudo é um povoar descarado da imaginação, com uma imagética fenomenal apoiada nas palavras seguras e na oralidade constante presente no trautear das tropelias da quadrilha.
Sem o lirismo templário e erudito de muitos dos “mestres” da nossa literatura, mas com uma sagacidade, uma comicidade e uma escrita absolutamente vorazes e simultaneamente tão simples e entendível, dourada mesmo, Mário Zambujal afigura-se como um dos escritores com quem mais me diverti nos últimos tempos, e do espaço do tempo sei eu qualquer coisa.
A malandragem que ele nos apresenta é de todos conhecida, se não é deveria ser, porque todos os de nós que já percorremos as noites da cidade conhecemos ou já ouvimos falar de algum daqueles trafulhas de renome, perpetrados por histórias de noites de pancadaria cega ou de golpadas absolutamente incríveis. Os Beto Mãozinhas desta praça que na noite em que muitos descansam tantos pecados cometem e a todas as luxúrias desta vida se entregam, com a particularidade notável de serem uma quadrilha absolutamente romântica e tambem ela lírica, que não permite a utilização de armas de fogo nos seus “estatutos” de pequenos vândalos. Ainda não percebem porque razão alguém se dá ao trabalho de escrever sobre o que já foi escrito? É fácil. Mesmo em português, mesmo sobre um livro que de novo já tem pouco, há sempre a sorte de não parecer louco e de escrever mais um pouco, tentando acrescentar o que quer que seja que lhe possa estar a faltar. Se lhe falta alguma coisa? Não. Mas nunca é pouco
A história atinge o ponto auge do romantismo de delícia no momento da morte de Renato e do enfarte que sofre Marlene, ao ver o seu companheiro sucumbir às armas que não desprezava.
Tudo isto para quê?
Não sou de fazer resumos ou de me achar ser seja lá o que for para vir, aqui, praticar um qualquer exercício de escrita a propósito de uma obra que tem mais anos que eu, de dizer se o livro é o melhor ou o pior, se está mais ou menos bem escrito, o que sou, isso sim, é de enaltecer e de elogiar, de defender e de legitimar, de distinguir e louvar quando alguma coisa ou o produto de alguém merece com toda a justiça louvores, distinções e elogios e é isso mesmo que Mário Zambujal me merece, louvores, elogios enaltecidos e provas provadas de letras bem orquestradas e brincadeiras lexicais capazes de me prender, de me colar o traseiro ao sofá, de me deixar ficar por lá.
Vou lê-lo novamente Mário, vou com toda a certeza! E vou reler esta sua crónica, não poucas vezes, nos anos de vida que tenho pela frente e, não contente, emprestarei e recomendarei o livro a quem não saiba o que há-de ler, a quem não saiba quem escolher, a quem não perceba o que esta Crónica dos Bons Malandros consegue fazer, por quem tem a sorte achada pelo somatório das vezes em que se conseguem folhear e voltar a passar as 180 páginas desta pérola. Sim, pérola, jóia, relógio banhado a alegria e a diversão, na bela companhia que faz toda esta história, na persistência com que a mesma se fixa na nossa memória e na agradável sensação que se tem enquanto se avança pela noite de Lisboa fora rumo ao grande assalto à Gulbenkian.
Atrevido como o ferrão das abelhas que servem de móbil ao Furto, Mário Zambujal chegou-me assim, livre, limpo, claro, solto, simples, informal, alegre e rápido, como rápido tem de ser um mestre na arte do contar, na arte do relatar, quanto mais um artesão da criação, um doutor das expressões livres e assim, para o soltinhas.
Obrigado, Mário. Foi um prazer conhecê-lo assim.

Eusébio, Hércules e os Homens

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O Homem é uma coisa meio esconsa e desconexa, meio espirrada, sobretudo uma coisa meio perdida em frases de quase nada. O Homem é fraco, cada vez mais fraco, e depois é o tipo de gajo que vai na onda… Venha cá, não tenha medo, não se esconda! O Homem é frio, é vazio, não se tapa quando tem frio, é estúpido. É isso! E ridículo! Pois! E a inacreditável leviandade de quem dita, assombra e mais do que isso, irrita. E olha, já lá vem o Hércules, o bruto, nervoso e astuto, fisgado, irritado, nervoso e chateado, pronto para lembrar Portugal, que nesta segunda-feira, o princípio de uma semana inteira, que a vida não cessa, é assim e no fundo pouco mais interessa, e que a gente vai continuar, enquanto houver estrada para andar.
É importante lembrar, é importante gravar e recordar, mas é nosso dever o de aproveitar, de viver e aprisionar tudo o quanto possamos juntar, para desta vida um dia poder levar! E o que vai, foi a vida que se viveu, os beijos e abraços, os sorrisos… e as lágrimas que tantas vezes lá estiveram, os copos que se beberam e os pratos que se comeram. As fotografias não tiradas e as palavras apaixonadas, essas levá-las-ei no peito, que podem sempre dar jeito, nunca se sabe como é aquilo lá no outro lado, não terei paciência para lá estar sentado, por isso olhe, faço aquilo que melhor sei fazer, vivo. Vivo e quero viver. Quero viver com as imagens que não gravo e as fotografias que não tiro, não edito e não partilho! Quero ter memória! Quero ser memorizado, decorado, lido e escutado, não quero ser Homem como são tantos, quero ser homem como o são uns quantos que conheço, é mais do que isso, quero e vou ser o homem que mereço.
Quando partem, guardo-lhes o que lhes reconheço, mesmo não sendo eu capaz … de me achar… capaz de achar coisas destas, guardo-lhes o nome! Porque podemos esquecer os Homens, mas as palavras, essas mesmas, o vento insiste em levá-las e depois, meio confuso, acaba por trazê-las de volta, já os homens e os outros também, quando partem, não voltam mais! Ficam as fotografias e as salas vazias, as memórias cheias e dessas, dessas não nos cansaremos nunca. Recordar é celebrar a vida, é gastar alegremente uma história tantas vezes repetida! O homem morre mais depressa se se lhe esfuma a memória! O resto? O resto é história. Cada um escreve a sua. Eusébio da Silva Ferreira, vais ter o teu nome numa rua. Quantos te invejam e mais não queriam do que ter tido uma vida como a tua? E quantos serão aqueles que vão passar na tua rua, sabendo mesmo que é tua? Espero que te dêem uma rua importante e não apenas uma travessa virada para um mirante. Ruas dessas também faço eu! Quem olhar para a placa com o teu nome terá de saber quanto o teu nome valeu, e eu, que sou de um clube bem diferente do teu, sei e saberei saber, que na rua que te há-de pertencer estará parte de tudo o que fizeste por um país que não era o teu, num tempo que não era o meu. Quem lá passar terá de saber aquilo por que passaste e tudo o quanto que entregaste a um país que abraçaste, ao patrão para quem trabalhaste, à bandeira que beijaste. Foste herói para muitos que te olharam com estranheza na tua terra portuguesa! Mais não sei dizer, a não ser, que hoje foi o dia em que partiu um escritor, daqueles que escreveu com os pés histórias de encantar milhões, de aquecer todos aqueles corações, oprimidos e amordaçados, de direitos forçados mas unidos pela paixão necessária do desporto. Só mesmo “a bola” para juntar ao televisor fosco, ou junto aos transistores avariados que só funcionavam com marretadas de lado, pessoas que nunca se viam, azuis, verdes e vermelhos, ali, lado-a-lado, rabiosque sentado, café esgotado e o salão abarrotado, cerveja a sair e a pulsação a subir. Vai jogar Portugal! Ou então é o Benfica que vai jogar outra final! Foi autor de tanto e de tanta coisa e esse lado partilhado é que é aqui lembrado. Lá vai a memória a caminhar com os homens, de mão dada, quase sempre calada, mas presente. Espero que seja suficiente. Adeus Eusébio. Caramba, a vida é de cristal e recordar nunca fará nada mal.
É isto que tenho a dizer.
Amanhã é mais um dia, mas não um dia mais. E tu, já sabes onde vais?

Pesca (as) dores

Pesca (as) dores

Se fosses um qualquer que não aquele que és quem pensas tu que serias?
Pescador de rede descosida, cansada, gasta, encrostada de tanto sal que lhe temperou os fios, finos como cabelos, juntos fazem tanto mais do que fariam na solta soltura que lhes reservava a vida futura, se rede não tivessem sido, o que lhes teria acontecido, não teriam sequer tido um nome devido, seriam fio fosse o que fosse que tivessem vivido. Fio, que nome mais aborrecido. A vã glória de ser qualquer coisa não te deixou sequer ser corda. Acorda que vais ser fio para toda a vida!
Se não pescasses e com as redes nada quisesses o que seria de ti nos dias em que dificilmente te reconheces?
Sim aqueles em que ouves e não escutas, em que pensas que pensas e não… não nada, absolutamente coisíssima nenhuma. Mais uma? Pode ser.
Sabes e não esqueces que o peixe te traz aos olhos o mar e os cheiros da maré permanentemente descontente, ora sobe, ora desce, não sabe por ventura ela o que é tudo aquilo que sente.
Se do mar voam os sonhos dos marinheiros que nos valeram, dos heróis que lá pereceram e de todos aqueles que lá chegaram, bem como dos que foram e nunca mais voltaram, porque lhe queremos nós tanto e tão bem, porque será que sinto nele o choro de quem foi e já não vem?

“Ó mar salgado, quanto do teu sal São lágrimas de Portugal!”

Se fosses homem normal, outro que não o homem que és, quem seria o animal que gostarias de ver nos teus pés?

São os olhos que abrem e fecham, são os dias que fazem o mesmo, são as noites que de silêncio se fazem doces e na meiguice me desejam um outro, um novo, um qualquer pensar que me faça acordar de novo com os olhos a abrir, a fechar, a parar para pensar, imaginar, sorrir, sonhar, não gostar. São os olhos que fazem sonhar os peixes também, isso e os outros peixes, que eles gostam de se imitar e de fazer tudo em grupinho, como meninas à casa de banho.

Se não fosse este que vou sendo seria sempre de um lugar onde o tempo me levou. Pior do que querer ser é lamentar nunca ter sido. Pior do que não saber ser é desejar nunca ter sido.
Peixe? Prefiro grelhado, sempre sabe melhor que o cozido que na verdade se torna sempre um pouco desenxabido. Faz sentido? Não.
É melhor assim.
Talvez seja, sim.
Aqui para nós, que ninguém nos lê, grelhado fica o caso arrumado, já lá vem o molho para poisar na mesa, aí sim, de lado, que não fique o caldo entornado, que isto é peixinho bom, essa riqueza portuguesa.
Com franqueza!
Pescar não pescaria com certeza que para isso é preciso nobreza e essa não a tenho por certo.
Tenho nos dedos a irreverência que me permite o pensamento, seja mais rápido ou mais atento. Junto palavras à mesa e o peixe, esse… deixa lá isso homem, o peixe sabe bem, o resto… é como diz o outro, é merda que não interessa a ninguém. Leva a cana, já sabes, podes sempre pescar as de alguém!
Hã?
Deixa lá isso. São dores. Minhas tuas. O mar também as tem